quinta-feira, 11 de junho de 2009

NO TEMPO DAS SERENATAS

1. Maria não era a primeira, mas era a única filha de Libório e D. Rosa. Tinha os guris, Otacílio, popularmente conhecido como Ota, por seu talento para fazer caricaturas, e Aderbaldo, um ator mímico de sucesso internacional, graças a um problema de dicção nato que lhe revelou tal talento. Menina e caçula, Maria virou o centro de todas as atenções da família Nunes Pereira. Militar de alta patente, Libório era linha dura, mas tinha um lado suave. Gostava de música. Era fã de Silvio Caldas, Orlando Silva, Chico Alves, entre outros ídolos da época. E Maria ganhou o nome por causa dessa paixão do coronel pela música ? "...o teu nome principia na palma da sua mão", cantarolava Libório para a pequenina dormir. E comentava com D. Rosa, "olha só, mulher, a mãozinha dela. Uma linha do destino cheia de promessas!".

2. Família classe média alta para a época, os Nunes Pereira moravam na Tijuca, entre mansões portentosas e solares não menos, em estilo e beleza neoclássico, e em meio à arrogância do clã cajuti, enraizado na tradição das famílias que ocuparam o bairro e lhe deram esse ar soberbo aos seus moradores e que persiste até hoje. A casa dos Nunes Pereira, entre a mansão do Barão do Fragata e do solar do Conde de Saracuruna, se quedava modesta, mas não feia, nem desconfortável, para os padrões dos seus moradores. Da mansão Fragata, volta e meia, ressoava de um majestático piano de cauda, executado por um exímio pianista, o maravilhoso "Bolero de Ravel". O barão era louco pela composição. A audição começava ao ocaso, com as janelas abertas, para que quem passasse pudesse desfrutar da maviosa melodia.

3. À direita, ficava a casa do Conde de Saracuruna, constantemente fechada, que até a gurizada da rua dizia ser mal-assombrada. Mas lá duas ou três vezes ao ano, o solar era aberto para festas sociais a que somente a nata cajuti tinha acesso. Libório, apesar de patenteado com o oficialato, nunca tivera a oportunidade de compartilhar de tais convivências. As festas do conde eram notificadas em todas as colunas da época. Nem mesmo João do Rio tivera, vamos dizer assim, ousadia de uma fina maledicência quanto à recepção e aos convidados, muito menos ao Conde. O luxo e o requinte das reuniões do Conde saiam até na imprensa internacional, quando não muito vinha um convidado das "Oropas". Isso tudo passou a ser sonho (sonho, não!), obsessão de Libório, quando Maria fizesse seu debut nos salões da mansão de Saracuruna. Que, certamente, dali sairia o melhor partido para desposá-la. As árvores ficaram desfolhadas, as lareiras voltaram a ser acessas, os jardins voltaram a florir e o sol elevou-se ao calor de 36º, raros à época, tudo rolando num ciclo normal e contínuo, em que o calendário engole meses e anos... Quando o coronel percebeu, Maria já estava às vésperas de debutar.

4. Juca era do Morro do Borel, ali nas áreas da Usina. Atrasava o relógio até o seu horário encostar com o da saída de Maria, que estudava no Instituto de Educação. Quando chegava mais cedo, juntava-se aos jovens transviados que faziam ponto no Regina, superconfeitaria, ali na esquina com Ibituruna. Foi ali que bebeu, pela primeira vez, um leite batido com sorvete. Juca gostava de tocar violão, que o fazia de ouvido, e de cantar sambas de Geraldo Pereira, Noel Rosa, Carlos Cachaça, etc, mas logo passou a arriscar suas próprias composições. Ninguém inspirava mais ele do que Maria, vestida de azul-e-branco, que a avistara uma vez indo p'ra casa, no bonde 86, conduzido pelo Quintas, o poeta. Os cabelos negros e escorridos, a pele alva, os olhos azulados, o nariz pequeno e afilado, os lábios rosados e o sorriso cativante de Maria seduziram Juca à primeira vista. "....Maria, o teu nome principia na palma da minha mão", descobriu-lhe o nome e a canção que o Caboclinho Querido cantava em tom de serenata.

5. Descobriu também o endereço de Maria. E se preparou para a grande homenagem. Paletó de mangas curtas, mas que lhe possibilitava melhor desempenho ao violão, assim como as calças, que deixavam à amostra as canelas longas, cobertas por carpins vermelhos, seguiu para Tijuca. Os sapatos tinham as infalíveis duas cores. Com um buquê com onze rosas amarelas, uma canção na cabeça e Maria no coração, Juca foi para o pé da janela da casa do coronel. "... Maria, o teu nome principia na palma da minha mão e cabe bem direitinho dentro do meu coração", iniciou a serenata, que logo despertou a vizinhança. Um ou outro resmungou, especialmente seu Libório, que levantava às quatro da manhã e partia para a Vila Militar. Irritou-se também porque o intruso roubara-lhe a canção que ele reservara para sua menina.

6. Não demorou quase nada, uma rádio-patrulha chegou e recolheu o recalcitrante. Fazer serenata era coisa de desocupado e ser preso um risco que, aliás, os corações apaixonados gostavam de correr, até porque valorizava a melódica declaração de amor. "Juca foi atuado em flagrante, como meliante", diria Chico Buarque. Mas p'ra surpresa de Juca, o boletim de ocorrência registrava outra infração que nada tinha a ver com aquela serenata, que Maria só tomara conhecimento porque o barulho das sirenes a acordara, e Juca nem tinha terminado de cantar a primeira música do repertório reservado para aquela noite.

7. Num entrevero com a polícia, Ditão, vizinho de Juca no Borel, tinha batido as botas. Dona Ermengarda, mãe do bandido, reconheceu o morto e voltou para casa para separar a roupa do enterro. Deixou o terno sobre a tábua de passar e se foi ao banho. Alheio ao acontecido, Juca, que avistara pela janela do barraco aquela roupa passadinha, resolveu tomar emprestada sem pedido prévio. Dona Ermengarda ainda viu Juca descer o morro, todo enfatiotado, com um palmo de braços e canelas à amostra, pegar o bonde e seguir para a casa da Maria.
“... e no meio da alegria" chegou a polícia para resgatar a roupa do defunto.


Texto do livro "Vim ao mundo a passeio", comemorativo dos cinquenta anos de jornalismo do repórter e blogueiro Miro Lopes