sábado, 4 de abril de 2009

Alcyr bebe leite, Chopp bebe água


Conheci na noite grande, como diria o poeta, compositor e jornalista Ricardo Galeno, outro não menos compositor, o pianista Alcyr Pires Vermelho, autor de Dá cá o pé louro, com Lamartine Babo, Tic-tac do meu Coração (Walfrido Silva), Laura (João Braguinha de Barro) e, Canta, Brasil (David Nasser). Me surpreendi de saber que ele tocava a noite toda nas boates e não bebia uma gota de álcool, desfazendo uma imagem que eu tinha dos boêmios. Nos intervalos, ele pedia ao bareiro um copo de leite. Ninguém era mais boêmio do que aquele pianista magérrimo, cabelos ralos e brancos, rosto fino, adunco, de óculos, que dedilhava verdadeiros clássicos da música de todos os tempos.

Mais recentemente, conheci outro boêmio que não faz trato de consumo etílico de maneira alguma. É Chopp, oficialmente Sidney Machado, um dos diretores de harmonia da Beija-Flor de Nilópolis. Água mineral é o combustível que move Chopp nas noitadas de samba e farra.

Alcyr e eu

Me surpreendi mais ainda com o salário que o talentoso e simples, consagrado e modesto pianista de nome pomposo recebia como músico. Alcyr tinha muitos fãs importantes, como banqueiros e ministros, que não abriam mão de almoçar, esticar durante o rush, para vê-lo e ouvi-lo dedilhar o seu fiel companheiro de trabalho.

Sugeri ao José Maria Cañedo contratá-lo para tocar no Cassino-Rio durante o almoço e, antes de começar o show Jogo Feito. Encontrei Alcyr num restaurante da rua Ouvidor. Quando o convidei para mudar de endereço é que soube que recebia, pasmem, apenas um salário mínimo. Mesmo antes de saber disso, já havia acertado com Zé Maria, que deveria pagar-lhe algo em torno de três vezes mais. Passei essa informação ao Alcyr. Semana seguinte, conforme combinado, lá estava Alcyr abrilhantando o almoço de um grupo de banqueiros. No final do mês, soube pelo próprio Alcyr que ele abriu mão do salário acertado, em favor da carteira assinada, o que não estava desvinculado do acordo. Tinha sido enrolado pelos sócios, sem a anuência do Zé Maria, mas Alcyr pediu para “deixar quieto”.

Natural de Muriaé, mineiro de poucas palavras, mesmo assim sempre conversávamos muito, talvez porque nos encontrássemos raramente. A temporada de Jogo feito acabou e Alcyr continuou na casa por mais algum tempo. Nunca mais nos encontramos.

Texto do livro "Vim ao mundo a passeio", em que registro meus 50 anos como repórter e boêmio.

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