sábado, 18 de abril de 2009

Crônica

A bala fez o buraco

1. A Lapa, o mais carioca dos bairros do Rio, completamente revitalizado, recupera a fama boêmia, da qual é berço desde os anos 30, e conquista a mesma efervescência dos locais que concentram grandes estabelecimentos de cultura e diversão noturna. E boemia e malandragem vivem juntas. Naquela época, tinha a malandragem dos que contrariavam a lei, sem cometer crime contra a vida, como Brancura e Baiaco, que eram rufiões, ou como Sete Coroas, que já tinha escrito seu nome na bandidagem desde a Bahia. Sete Coroas ensinou Madame Satã a ser malandro. No bojo dessa efervescência, ressurgiu na nova Lapa o caráter ruim da malandragem daquele tempo em que a violência imperava, conforme as recentes manchetes dos jornais.

2. A violência engoliu aquele malandro carioca, sagaz e sutil, cheio de destreza e lábia, carisma e simpatia, notoriamente o sujeito que utilizava da inteligência e artimanha para lidar com os mais fortes e que acabava sendo aceito porque não causava prejuízos nem moral, nem financeiramente, e muito menos agredia sua "vítima" fisicamente. Uma malandragem carioca que diverte terceiros e serve de alerta para os distraídos ou metidos a espertos.

3. Assim como o jeitinho (instituição criada para ilicitamente tirar vantagem e dar prejuízos à sociedade num todo, como a política das fraudes, o tráfico, as milícias, a pirataria, etc.), o caráter bom da malandragem rende simpatia mesmo diante daqueles que teriam motivos para não aprová-lo. Mas, a concomitância acaba aí.

4. Daquele tempo, vale lembrar, Madame Satã, apelido adotado pelo brigão, homossexual assumido, cozinheiro e quase perpétuo frequentador das prisões, especialmente a da Ilha Grande, José Francisco do Santos. Provavelmente, o primeiro transformista, a Mulata do Balacuxê, do teatro rebolado. Definia-se como "filho de Iansã e Ogum e devoto de Josephine Baker", inventando para si mesmo vários personagens: Jamacy, a Rainha da Floresta, Tubarão, Gato Maracujá.

5. Satã conviveu com os grandes nomes da música popular da época: Chico Alves, Orlando Silva, Nelson Cavaquinho, etc. Conta Ricardo Cravo Albin que "Mulato Bamba", de Noel Rosa, foi feita para ele. Satã foi acusado da morte do genial compositor Geraldo Pereira, autor de "Pisei num despacho" (c/ Elpídio Viana), "Resignação" (c/Arnô Provenzano), "Você está sumindo" (c/ Jorge de Castro) e outras tantas. Satã conta que Geraldo "disse uma porção de desaforos, aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio-fio e morreu. Mas morreu por desleixo do médico", defende-se Satã, porque foi para a assistência vivo.

6. Satã contabiliza três mil brigas, 29 processos, 19 absolvições, 10 condenações e três homicídios. O primeiro aos 28 anos. Madame conta na entrevista que o pessoal d'O Pasquim fez com ele no Capela, em abril de 1971: "Deram um tiro num guarda civil na esquina do Lavradio e fui preso".
Millôr (Fernandes): Segundo você, injustamente.
Satã: Injustamente.
Sérgio (Cabral, pai): Mas você não deu o tiro no guarda?
Satã: Não, o revólver é que disparou na minha mão, casualmente.
Sérgio: Foi a bala que matou?
Satã: Não, a bala fez o buraco. Quem matou foi Deus.

Texto do livro "Vim ao mundo a passeio", em que registro meus 50 anos como repórter e boêmio.

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